terça-feira, 30 de setembro de 2014



"Porque curiosamente, onde menos te encontro é onde tu exististe. Desprendeste-te donde estiveste e é em mim que mais me acontece tu estares. Mas nem sempre. Quantos dias se passam sem tu apareceres. E às vezes penso é bom que assim seja para eu aprender a estar só. Mas de outras vezes rompes-me pela vida dentro e eu quase sufoco da tua presença. Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encontro e digo-te vai-te, vai-te embora. Por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz. E digo-te não vás. 

Fica. 
Para sempre."

Vergílio Ferreira 
in Cartas a Sandra



"Quando a ternura 
parece já do seu ofício fatigada, 

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas."

Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"

memórias.





Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito. 
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro a olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

segunda-feira, 29 de setembro de 2014




"Gosto de estar no cais quando chove
A chuva transporta sabores e odores
Que quando misturados com o mar
Transformam a atmosfera
Num ambiente de caldo
Que me faz flutuar. 

Gosto de estar no cais quando chove
Porque gosto de partir
Para onde os sonhos são realidade
E é sempre melhor partir quando chove.
Gosto de estar no cais quando chove
Porque o navio só parte
Quando a chuva acaba
E assim encontro razão para não partir
Porque só me apetece partir quando chove
Porque fico sempre e talvez para sempre
E porque a realidade nunca é o que se sonha."


Sophia de Mello Breyner Andersen, "Dia do Mar no Ar".

silêncio.


domingo, 28 de setembro de 2014



Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, 
e o que nos ficou não chega 
para afastar o frio de quatro paredes. 
Gastámos tudo menos o silêncio. 
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, 
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro
nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um
ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes
verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um
aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

.
[Eugénio de Andrade. In: Adeus]




Se existisses, serias tu,
talvez um pouco menos exacta,
mas a mesma existência, o mesmo nome, a mesma morada.

Atrás de ti haveria
as mesmas palmeiras, e eu estaria
sentado a teu lado como numa fotografia.

Entretanto dobrar-se-ia o mundo
(o teu mundo: o teu destino, a tua idade)
entre ser e possibilidade,

e eu permaneceria acordado
e em prosa, habitando-te como uma casa
ou uma memória."

"A vida real", Manuel António Pina

pequenas coisas.


sábado, 27 de setembro de 2014


"Encontraram-se
à margem dos seus deslocamentos,
duas figuras capazes de existir e morrer.
Ali,somados ao lugar que os inventou,
foram peremptórios em reconhecer
a falência da realidade, o que só os tornou
ainda mais coesos.
Sobrepunham-se de tal forma
que os trâmites da experiência se viam instituídos
pelos seus próprios olhos.
Um tocou o outro,
a sensação de se propagarem como
âncoras debaixo de água.
Tudo assim lento,
confirmado pela respiração.
Se ainda houvesse ruas,
julgaríamos que era de noite,
que chuviscava,
que tinham roupa um para o outro.
Sentiam-se emergir de um equívoco, alçados
pelo lucro do desejo.
Cruzariam a própria sombra para jurarem isso mesmo:
que existiam, que haveriam de morrer.
Que se tinham encontrado."

- Vasco Gato, Napule, 2011